sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Perna Roxa

                                         Conto baseado num dos causos contados pelo meu mineiríssimo avô, Ovídio, para os netos, durante noites escuras e chuvosas. 


Era dia de finados. Todo mundo sabe que não se deve trabalhar nesse dia. Isso enfurece as almas. É o momento de prestar homenagens aos mortos. Ela nunca ligou para nada disso.

Ainda lembro da cabeça loira passando pela porta, tanto tempo atrás. Ele a trouxe, ainda com jeito de menina, vacilante e assustada nesse mundo novo. Falava pouco, lia muito. Era uma moça valorosa, cuidava da casa, entrava e saía, sempre muito apressada. Mulher pequena e esperta, não temia nada e não se dobrava a ninguém. Tinha vindo de longe e nunca fez questão de se misturar. Sacudia a cabeça quando ele tentava convencê-la a ser mais parecida com as esposas daqui. Ele perdia os cabelos e ganhava peso. A cabeça loura dela foi dando lugar a um tom mais prateado, mas a força dela nunca esmaeceu. Nem quando ele caiu no meio da sala um dia e nunca mais voltou a passar por aquela porta. Pelo contrário, a viúva, trabalhava com ainda mais energia e eventualmente até cantava durante as
tarefas.

Não demorou para a prosperidade ficar obvia e visível. A casa foi ficando mais bonita, do lado de fora, rebanhos cresceram, máquinas novas, o pomar mais frondoso, muitos empregados recém chegados. A fazenda foi se tornando viçosa e ela, cada vez mais destemida. Era comum ver homens poderosos vindo pedir-lhe favores e conselhos, que ela dava sem pestanejar, impaciente, autoritária e apressada. Alguns pretendentes se aproximaram, mas foram escorraçados sem nenhuma simpatia. Ela gostava de viver só e ser quem era.
A gente daqui sempre respeitou as tradições. De oferendas às aparições, rezas nos dias certos, jejum em momentos esperados, novenas e procissões, resguardo de trabalho quando tinha que ser. Ensinavam às crianças e passavam o costume de geração em geração. Ela, não. Revirava os olhos e ria condescendente quando Joana, a vizinha e única amiga íntima, já nos seus anos de declínio, a alertava para as tradições.
– Quando tiver tempo, eu faço, prometo. Por enquanto, você faz por nós duas. – respondia à amiga, brava pela teimosia.

A noite passou ligeira, as onze badaladas reverberaram no relógio de pêndulo, encostado na parede da sala. Era herança da mãe do falecido. Algumas vezes dava a impressão de que fazia careta para a peça. Talvez dirigisse a ele todo o desgosto direcionado à insuportável família do marido. Papéis espalhados deixavam claro que ela estava ali desde cedo, organizando contas, tabelas, mapas de propriedade, contrato de compra da fazenda de um vizinho. Ninguém além dela na casa, silêncio quebrado apenas pelos mugidos das vacas e mudanças nos ponteiros do relógio, o vento e a tempestade lá fora. A escuridão, amenizada apenas pela luz fraca de um lampião, tomava conta de tudo. A chuva levou a eletricidade embora, e a companhia só viria no dia seguinte. Ninguém faria nada naquele dia. Ela continuava fazendo as anotações, conferindo números, fazendo contas. Não havia parado nem para almoçar. As batidas fortes na porta dos fundos estremeceram até as telhas. Ela ficou quieta, talvez esperando a visita inconveniente ir embora. Uma segunda batida e a voz conhecida lá de fora.

– Rosa, trouxe seu jantar! - a voz da amiga a obrigou a se levantar. - Não precisa abrir. Deixei o pernil lá em cima do fogão. Já vou embora que a chuva está engrossando de novo. 

Rosa agradeceu e sentou-se de volta na cadeira. Prosseguiu trabalhando. Esticou-se na cadeira e percebeu que estava com fome.  Pensou em ir até a cozinha comer o que a vizinha trouxera. Eram amigas há tempos, a outra estava doente e ela sentiu uma certa culpa por receber o jantar ao invés de ir até lá, levar uma refeição para Joana, a amiga que vivia sozinha desde a viuvez. Prometeu a si mesma ser mais dedicada no futuro. Afinal, eram as vizinhas mais próximas e ambas eram sós. Deveria ter mais cuidado e prestar mais atenção à amiga.

As doze badaladas bateram enquanto chegava à entrada da cozinha. Viu a forma enorme e repreendeu Joana mentalmente. Para que aquele exagero para uma pessoa só? Mais dois passos e descobriu o volume sobre a cauda do fogão de lenha. Piscou repetidas vezes tentando assimilar o choque. Não era o pernil. Era uma perna humana, feminina e roxa, onde larvas de varejeira passeavam tranquilamente. O cheiro contundente atingiu o nariz no mesmo momento em que a porta  se abriu com um rangido agourento. O corpo gordo e careca do marido, já mutilado pela decomposição, seguido de outros cadáveres de homens, mulheres e crianças invadiam sua cozinha em passos trôpegos, enchendo o ambiente com gemidos, cheiro de carne podre e pedaços humanos que insistiam em se desgrudar de seus donos. A última coisa que Rosa conseguiu ver, foi a horda se aproximando e ferindo suas vivas carnes com dentes e unhas.

Na manhã seguinte, o capataz encontrou uma grande poça de sangue e vísceras, além da perna podre numa travessa e marcas de terra por toda a cozinha. Na casa de Joana, encontraram seu cadáver, morta por um infarto na manhã do dia de finados, com uma perna faltando.

Ninguém mais teve notícias de Rosa, nenhum corpo foi encontrado e não havia herdeiros. A fazenda foi dividida pelos funcionários e, ninguém mais queria morar na casa, que foi demolida para construir um grande celeiro no lugar do que já foi o grande orgulho daquela mulher tão desafiadora. Depois de Rosa, nunca mais, ninguém naquela região, ousou trabalhar no dia dos mortos.