terça-feira, 26 de março de 2019

Por que tantas estátuas egípcias têm o nariz quebrado?


Face of Senwosret III, ca. 1878–1840 B.C. Courtesy of The Metropolitan Museum of Art.Statue of Amenemhat III, c. 1859–1814 C.C. Courtesy of the Cleveland Museum of Art.
A pergunta mais comum que o curador Edward Bleiberg recebe de visitantes do Museu de Arte Egípcia do Brooklyn é uma direta, porém incômoda: Por que os narizes das estátuas estão quebrados? Bleiberg, que supervisiona a extensa coleção de arte Egípcia, Clássica e Oriente Médio do museu, foi surpreendido nas primeiras vezes em que ouviu esta pergunta. Ele tinha a certeza que as esculturas estavam danificadas; seu treinamento em egiptologia o encorajava a visualizar como uma estátua pareceria se ainda estivesse intacta. Parecia inevitável que após milhares de anos, um artefato tão antigo mostrasse todos os detalhes. Mas esta simples observação levou Bleiberg a descobrir uma abrangente teia de destruição deliberada, que aponta para uma complexa gama de razões por que a maioria dos trabalhos de arte egípcios foram desfigurados em primeiro lugar.
A pesquisa de Bleiberg é agora a base da contundente exibição “Poder Notável: Iconoclastia no Egito Antigo. ” Uma seleção de objetos da coleção do Museu do Brooklyn viajará para a Fundação de Arte Pulitzer no fim deste mês sob a co-direção da curadora associada Stephanie Weissberg. Expondo lado a lado, estátuas danificadas e altos-relevos, datados do século XXV a.C ao século I d.C, junto a uma cópia intacta, a mostra testifica a função política e religiosa dos artefatos egípcios – e a arraigada cultura iconoclasta que levou à sua mutilação.
Em nossa própria era, onde reconhecemos nos monumentos nacionais e outras demonstrações de arte, “Poder Notável” acrescenta uma relevante dimensão ao nosso entendimento de uma das mais antigas e duradouras civilizações do mundo, cuja cultura visual, em grande parte, manteve-se imutável pelos milênios. Esta continuidade estilística reflete – e diretamente contribui para – os longos períodos de estabilidade do império. Porém, invasões de forças externas, questões de poder entre soberanos das dinastias, e outros períodos de turbulência deixaram suas cicatrizes.

Bust of an Official, 380–342 B.C. Courtesy of The Metropolitan Museum of Art.Amunhotep, Son of Nebiry, ca. 1426–00 B.C.E. Courtesy of the Brooklyn Museum.

“A consistência dos padrões onde os danos foram encontrados nas esculturas, sugere que foram propositais”, disse Bleiberg, citando diversas motivações políticas, religiosas, pessoais e criminosas para os atos de vandalismo. Para discernir a diferença entre danos acidentais e vandalismo deliberado foi necessário reconhecer tais padrões. Um nariz protuberante numa estátua tridimensional é facilmente quebrável, ele admite, mas a situação não é tão simples quando peças planas também ostentam narizes quebrados
Os antigos egípcios, é importante ressaltar, imputavam grandes poderes a imagens da forma humana. Eles acreditavam que a essência de uma deidade poderia habitar uma imagem daquela deidade, ou, no caso de meros mortais, parte da alma daquele ser humano poderia habitar uma estátua nomeada para aquela pessoa em particular. Essas campanhas de vandalismo tinham a intenção de “desativar o poder de uma imagem”, como Bleiberg enfatizou.
Tumbas e templos eram repositórios para a maioria das esculturas e imagens planas que tinham propósito ritualístico. “Todas elas têm a ver com o recurso de oferendas ao sobrenatural”, disse Bleiberg. Numa tumba, eles serviam para “alimentar” a pessoa representada no próximo mundo com presentes e comida do nosso mundo.  Nos templos, as representações dos deuses são expostas recebendo oferendas de representações de reis e outros nobres capazes de se responsabilizar por uma estátua.  

Stela of Setju, ca. 2500–2350 B.C.E. Courtesy of the Brooklyn Museum.

“A religião estatal egípcia”, explicou Bleiberg, era vista como “um arranjo onde reis na Terra proviam para a deidade, e em troca, a deidade cuida do Egito”. Estátuas e afins eram um “ponto de contato entre o sobrenatural e este mundo”, ele disse, apenas habitadas ou “revividas”, quando o ritual é performado. E atos de iconoclastia poderia interromper este poder.
“A parte danificada do corpo não é mais capaz de realizar este trabalho”, Bleiberg explicou. Sem o nariz, a estátua-espírito deixa de respirar, então o vândalo está efetivamente, matando-a. Marretar as orelhas a tornaria incapaz de ouvir orações. Em estátuas que pretendem representar seres humanos fazendo oferendas a deuses, o braço esquerdo – mais comumente usado para fazer ofertas – está cortado, então a função da estátua não pode ser cumprida (a mão direita está constantemente amputada em estátuas recebendo oferendas).
“No período faraônico havia um claro entendimento do que uma escultura deveria fazer”, disse Bleiberg. Até um ladrão de tumbas comum era mais interessado em roubar os objetos preciosos, ele também estava preocupado que a pessoa representada poderia se vingar se sua representação não estivesse mutilada.
A prática principal de danificar imagens da forma humana – e a comoção acerca da profanação – data do início da história egípcia. Múmias intencionalmente danificadas do período pré-histórico, por exemplo, falam de uma “crença cultural muito básica que danificar a imagem, danifica a pessoa representada”, disse Beliberg. De maneira parecida, manuais em hieróglifos continham instruções para guerreiros prestes a entrar em batalhas: construir uma imagem em cera do inimigo e então, destruí-las. Muitos textos descrevem o temor de ter sua própria imagem danificada, e faraós frequentemente decretavam terríveis punições para qualquer um que ousasse ameaçar suas representações.
Na verdade, “Iconoclastia numa grande escala... era primariamente política em suas razões,” Bleiberg escreve na exibição catalogada em “Poder Notável”. Desfigurar estátuas que representavam soberanos ambiciosos (e candidatos a soberanos), reescrevendo a história a seu favor. Através dos séculos essa eliminação constantemente ocorreu por linhas de gênero: os legados de duas poderosas rainhas egípcias, de quem a autoridade e misticismo alimentam a imaginação cultural – Hatshepsut e Nefertiti – foram largamente apagadas da cultura visual.
“O reinado de Hatshepsut apresentou um problema para a legitimidade do sucessor de  Thutmose III, e Thutmose resolveu este problema virtualmente eliminando toda memória em imagem e escrita de Hatshepsut,” Bleiberg escreve. O marido de Nefertiti, Akhenaten trouxe uma rara mudança estilística para a arte egípcia no período Amarna (1353 – 36 a.C) durante sua revolução religiosa. As sucessivas rebeliões forjadas por seu filho Tutankhamun e sua casta incluíram a antiquíssima veneração ao deus Amon; “a destruição dos monumentos a Akhentaten foi, portanto, completa e efetiva,” Bleiberg escreve. Nefertiti e suas filhas também sofreram, estes atos de iconoclastia obscureceram muitos detalhes de seus reinados.
Antigos egípcios tomaram providências para resguardar suas esculturas. Estátuas eram guardadas em nichos nas tumbas ou templos para protege-los em três lados. Eles estariam seguros atrás de um muro, seus olhos alinhados com dois buracos diante dos quais um sacerdote faria suas oferendas. “Eles faziam o que podiam,” disse Bleiberg. “Realmente não funcionou tão bem”.
Falando sobre a inutilidade dessas medidas, Bleiberg observou a aptidão evidente dos iconoclastas. “Eles não eram vândalos,” ele esclarece. “Eles não estavam desleixada e aleatoriamente destruindo obras de arte”. De fato, a precisão de seus formões sugere que eram profissionais especializados, treinados e contratados para este exato propósito. “Frequentemente no período faraônico,” disse Bleiberg, “era realmente somente o nome da pessoa visada na inscrição. Isso significa que a pessoa realizando o dano sabia ler! ”
O entendimento dessas estátuas mudou do decorrer do tempo, enquanto os costumes culturais mudaram. No início da era Cristã no Egito, entre os séculos I e III d.C, os deuses habitantes das esculturas eram temidos como demônios pagãos; para desmantelar o paganismo, suas ferramentas ritualísticas – especialmente estátuas fazendo oferendas – foram atacadas. Após a invasão muçulmana no século VII, supostamente, os egípcios perderam o medo desses antigos objetos de ritual. Durante este tempo, estátuas de pedra eram regularmente cortadas em retângulos e usadas em projetos de construção.
 “Templos antigos eram de alguma maneira vistos como pedreiras", Bleiberg disse, nada daquilo “quando você anda pelo Cairo medieval, você pode ver muito mais objetos egípcios antigos em um muro. ”
Tal prática, vista como ultrajante para ouvidos modernos, considerando nossa apreciação pela cultura egípcia e seus artefatos como trabalhos de mestre de fina arte, mas Bleiberg em apontar que os “antigos egípcios não tinham uma palavra para ‘arte’. Eles teriam se referido a esses objetos como ‘equipamento' ". Quando falamos sobre estes artefatos como trabalhos de arte, ele disse, nós os descontextualizamos. Além disso, essas ideias sobre o poder das imagens não eram peculiares no mundo antigo, ele observa, referindo-se à nossa própria era de preservação do patrimônio culturas e monumentos públicos.
“Imagens em espaço público é um reflexo de quem tem o poder de contar a história do que aconteceu e o que deve ser lembrado, ” Bleiberg disse. “Nós estamos testemunhando o fortalecimento de muitos grupos de pessoas com diferentes opiniões a respeito do que é uma narrativa apropriada. ” Talvez possamos aprender com os faraós; como nós escolhemos reescrever nossas histórias nacionais poderia apenas conter alguns fatos de iconoclastia.