A amiga
Moro só com meu pai há quase um ano. Um dia, minha mãe
acordou e me avisou que estava indo embora e que só levaria minha irmã. Queria poder
contar que fui altiva e que não perguntei o porquê e nem pedi que ela me
levasse, mas eu fiz tudo isso. Chorei como louca e implorei que não me
deixasse. Mas ela se foi. Acho que estava triste, espero que as lágrimas não
tenham sido só por pena. Espero que ela também sinta a minha falta.
Na primeira vez em que ela apareceu, eu ia me encontrar com o
Júnior, e meu pai fez um comentário sobre como o vestido que eu ia usar marcava
a “pochete” em volta da minha cintura. Olhei no espelho e me choquei com o quão
ridícula eu parecia. Como pude não ter notado aquilo? Estava enorme e deu muito
trabalho esconder embaixo de uma cinta e um short jeans que cobria meu umbigo. Para
disfarçar, vesti uma camisa de sarja e deixei a faixa da cintura um pouco
folgada, fazendo parecer que aquele volume todo vinha da roupa. Confesso que
qualquer vontade de sair sumiu no momento em que vi meu reflexo, mas não queria
decepcionar o Júnior. Meu pai também devia ter planos e se eu desistisse ia acabar atrapalhando. Fui à cozinha lanchar e
ela estava lá. Séria e concentrada, encostada na parede de azulejos, me aconselhou
a dispensar aquele pãozinho caso eu não quisesse que aquele volume crescesse
até explodir. Ela tinha razão. Tomei um copo de água gelada e administrei a
fome como pude.
Durante o churrasco, ela ficou afastada. Ainda assim, podia
sentir seus olhos sobre mim. Conversei com todo mundo, fiz graça e piada, mas
tudo o que comi foi um pedaço de palmito. Cada pedacinho de picanha me dava
agua na boca, mas também embrulhava meu estômago, me fazendo visualizar a mim
mesma em lojas plus size, com queixo triplo e um bigode enorme. Eu sabia que isso
seria possível. Minha mãe sempre disse que eu saí à família do meu pai. “Sofia
aos quinze já está parecida com as tias. Nem quero ver como vai estar aos
trinta”. Ela disse isso menos de dois meses antes de partir. Acho que ela
realmente não queria ver. Eu nunca seria esguia como ela e a minha irmã. Talvez
por isso tenha me deixado para trás. Ana estava satisfeita comigo e até riu
quando, no fim do dia, tive uma vertigem ao levantar de uma cadeira. Fico feliz
que só ela tenha notado, eu realmente não quero responder perguntas agora.
Antes que você pense, eu não sou maluca. Eu não acho que
esteja enorme de gorda, sei de cor as minhas medidas, mas também sei o
potencial que tenho, e realmente não quero ficar maior do que já estou. Perder
alguns centímetros no quadril e na cintura não fariam mal nenhum.
Agora, Ana me acompanha o tempo todo. Eu não quero, de jeito
nenhum, que ninguém saiba sobre ela, por isso temos um relacionamento discreto.
É mesmo uma sorte que meu pai esteja tão envolvido com a nova namorada ou ele
poderia notar que só tomo água antes de ir à escola e que estou
sistematicamente reduzindo meu almoço a uma maçã ou um tomate. É mais difícil
ser discreta quando saio com os amigos, mas sempre gostei de chá sem açúcar, e
quando o lanche vem para todo mundo, pego uma unidade de qualquer coisa, fico
brincando com a comida e continuo conversando até eles acabarem com tudo.
Ninguém nota, desde que eu faça piadas e continue sorrindo. A imagem da
gordinha palhaça cruza a minha mente, e continuo no meu propósito de não me
tornar uma delas.
Tenho me pesado todos os dias, e me frustra ter perdido muito
pouco peso. Meu pai comentou alguma coisa, elogiou minhas novas formas. Isso é
bom. Só preciso continuar o que estou fazendo e ele vai me achar bonita, como
achava a minha mãe.
Ultimamente, ela está me deixando louca. Ela me critica mais
do que eu mesma. Me arrasta para o espelho, a fita métrica e a balança
todos os dias, esfregando na minha cara que eu nunca vou deixar de ser uma
gordinha engraçada, e que logo vou virar ponto de referência “estou logo depois
da gorda”. Vejo nos meus sonhos uma Sofia deformada, presa em portas giratórias,
o Júnior rindo de mim e fingindo que não me conhece, meu pai indo embora e me
deixando por ter vergonha do fiasco de filha que sobrou para ele. Acho que não
devo reclamar da Ana. Ela me ajuda a ter consciência e tentar melhorar. Dia
desses ia sair com a turma para o clube e ela me convenceu do quão patética eu
pareceria num biquíni. Fui de short e camiseta e disse que tinha esquecido a
roupa de banho. Assim, não envergonhei meu namorado na frente dos nossos
amigos. Tenho medo que quando ele perceba o quanto sou deformada, me deixe para
sempre. Aliás, acho que ele já desconfia, mal chega perto mim e cada vez me
convida menos para sair. Por isso, resolvi apertar nos exercícios, correr todos
os dias, fazer mil abdominais. Até pode dar certo, se eu conseguir controlar a
vertigem.
Aprendi que se tomar as vitaminas certas, minha energia volta
sem ter que me entupir de carboidrato. Também encontrei na internet, um grupo
de amigas da Ana. Tem muita dica legal e histórias de meninas que estão quase
alcançando o corpo desejado com a ajuda dela. Conheci muita gente bacana e que
me entende. Não ficam mentindo, dizendo que estou linda ou até magra demais.
Elas jogam a real e me ajudam. Sinto Ana cada vez mais próxima, acompanhando a
minha vida a cada passo, me fazendo companhia.
Domingo desses, na casa da minha avó, a namorada do meu pai
comentou que eu não tinha almoçado. Ela falou isso na frente de todo mundo e eu
virei o assunto da mesa. Saí de lá com horário marcado na terapeuta, muitos
olhos em cima de mim e ouvindo xingamentos dirigidos à minha mãe. Por culpa
daquela intrometida, agora todo mundo acha que estou traumatizada. Ridículos.
Nem percebem que só estou gorda, minha mãe não tem nada com isso.
Cheguei ao consultório cedo. Não deixei ninguém me levar. Por
que incomodaria alguém se o Uber está aí para ser usado? As paredes cor de
pêssego me deixaram enjoada. Revistas de dois anos atrás, a secretária com o
buço por fazer. Estava para desistir quando a doutora abriu a porta. Uma mulher
pequena, cabelos pretos, olhos puxados e um jeito delicado que invejei
imediatamente. Sentei na frente dela sem ter ideia do que dizer. Ela segurava
uma prancheta de acrílico e me perguntou como eu estava, fazendo parecer algo
casual. Dei de ombros, disse que estava bem, que meu pai me mandou lá porque
minhas tias são malucas e esperam que eu também seja. Ela sorriu, contando que
também tem tias malucas e, me pediu que contasse minha história até ali. “Não
tenho nada a dizer, doutora.” “Você está aqui, eu também. Não podemos
desperdiçar nosso tempo precioso.” Aí comecei a falar, quando nasci, como era
minha família, meus pais, amigos e namorado. Claro que não mencionei a Ana. Ela
me fez perguntas sobre a minha mãe e eu não queria responder. O que eu diria
sobre ela? Linda, chique e meio assustadora? Ela foi embora. Ok. Ela era livre,
eu fiquei com o meu pai, não é como se ela tivesse me largado na rua. Eu tenho
tudo de que preciso, não quero essa estranha sentindo pena de mim. Droga, por
que fui chorar na frente dela? Durante semanas, voltei àquelas conversas. Sabia
que se não fosse, teria que dar explicações a todo mundo. Seria mais fácil
encarar a japonesa curiosa. Ela me mandou para um médico na mesma clínica que
chamou meu pai para conversar.
Encontraram a Ana, me encheram de remédios, contrataram uma
nutricionista. Até o Junior fica me vigiando agora. Que ódio da japonesa! Nunca
devia ter confiado. Não queria mais ir a nada que ela recomende, mas todo mundo
agora acha que pode mandar em mim. Acabei indo a um encontro no parque com
outras meninas. Era um piquenique. Uma delas tinha a pele esticada, parecia um
cadáver, não conseguia comer nada. Peguei uma ameixa e fiquei mordiscando
sentada na roda, fazendo um ou outro comentário espirituoso sobre o que diziam.
A líder devia ter seus trinta e poucos anos. Algumas contavam histórias
parecidas com a minha, várias também não vêem motivo para todo aquele alarde.
Uma das meninas chorou contando da amiga que estava internada. Elas competiam
para ver quem emagreceria mais. Eu queria não ter estado lá. A maioria se
deixou convencer que têm um problema. Querer ficar bonita agora é uma coisa
ruim, era só o que me faltava. Querer perder excesso é bem diferente de ficar
igual à menina cadavérica. Continuo visitando a doutora. Ana a detesta. Cada
vez que venho de lá, ela fica mais furiosa e grita comigo. Não quero mais
levantar de manhã. Fico cansada o tempo todo. Escuto a voz das meninas da
internet, do pessoal do piquenique, vejo o rosto da menina-cadáver, Ana grita,
a japonesa flutua na minha frente, Junior ri de mim, meu pai me olha assustado,
minha mãe sai pela porta, sinto a dor aguda no punho e o chão frio do banheiro
em contato com o meu rosto. O sangue quente começa a me molhar. Um grito, gente
em volta de mim, toalhas amarradas no meu pulso, sirene da ambulância.
O teto bege do hospital me encara. A luz fria incomoda meus
olhos. Meu pai dorme na cadeira, a namorada dele no sofá. Eles percebem que acordei
e me abraçam. Eu não achei que eles se importariam. Júnior não apareceu. Por
que viria? Ele está cansado disso há um tempo. Pela primeira vez desde nem me
lembro quando, choro toda a dor que me apertava a garganta. Ana sorri fria, no
canto do quarto, com seus olhos vidrados e cabelo ensebado. Pela primeira vez,
quero que ela vá embora para sempre.
Volto à nutricionista, ao médico, ao piquenique e à japonesa.
Dói meu estômago comer o que mandam, os remédios me deixam lerda, odeio falar
no assunto. No parque, Ana me olhava debochada, ria de mim, apontava meus
defeitos. Virei as costas. Nunca mais quero vê-la. Não vou deixar que vença,
sou mais forte que ela. Sorrio para a menina na minha frente. O nome dela é
Mariana, tem quatorze anos e gosta da minha companhia. Também gosto dela. Eu
mereço coisas boas.
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