quinta-feira, 15 de agosto de 2019

A amiga


A amiga

Moro só com meu pai há quase um ano. Um dia, minha mãe acordou e me avisou que estava indo embora e que só levaria minha irmã. Queria poder contar que fui altiva e que não perguntei o porquê e nem pedi que ela me levasse, mas eu fiz tudo isso. Chorei como louca e implorei que não me deixasse. Mas ela se foi. Acho que estava triste, espero que as lágrimas não tenham sido só por pena. Espero que ela também sinta a minha falta.

          Algumas semanas depois da partida delas, minha amiga chegou. Ela se chama Ana. Acho que ela tenta me fazer sentir melhor. De qualquer forma, ela me ajuda. Meu pai agora namora uma moça de vinte anos. Ela está na faculdade e ele parece gostar muito mesmo dela, parece até apaixonado. Eles passam muito tempo juntos, assim como eu passo com a Ana. Quer dizer, não do mesmo jeito. Nunca falei sobre Ana com nenhum deles. Também tenho um namorado, o Júnior. Ele é muito bonito e várias meninas dão em cima dele, algumas fazem isso na minha frente. Eu me esforço para estar à altura dele. Ana também me ajuda nisso.
Na primeira vez em que ela apareceu, eu ia me encontrar com o Júnior, e meu pai fez um comentário sobre como o vestido que eu ia usar marcava a “pochete” em volta da minha cintura. Olhei no espelho e me choquei com o quão ridícula eu parecia. Como pude não ter notado aquilo? Estava enorme e deu muito trabalho esconder embaixo de uma cinta e um short jeans que cobria meu umbigo. Para disfarçar, vesti uma camisa de sarja e deixei a faixa da cintura um pouco folgada, fazendo parecer que aquele volume todo vinha da roupa. Confesso que qualquer vontade de sair sumiu no momento em que vi meu reflexo, mas não queria decepcionar o Júnior. Meu pai também devia ter planos e se eu desistisse ia acabar atrapalhando. Fui à cozinha lanchar e ela estava lá. Séria e concentrada, encostada na parede de azulejos, me aconselhou a dispensar aquele pãozinho caso eu não quisesse que aquele volume crescesse até explodir. Ela tinha razão. Tomei um copo de água gelada e administrei a fome como pude.
Durante o churrasco, ela ficou afastada. Ainda assim, podia sentir seus olhos sobre mim. Conversei com todo mundo, fiz graça e piada, mas tudo o que comi foi um pedaço de palmito. Cada pedacinho de picanha me dava agua na boca, mas também embrulhava meu estômago, me fazendo visualizar a mim mesma em lojas plus size, com queixo triplo e um bigode enorme. Eu sabia que isso seria possível. Minha mãe sempre disse que eu saí à família do meu pai. “Sofia aos quinze já está parecida com as tias. Nem quero ver como vai estar aos trinta”. Ela disse isso menos de dois meses antes de partir. Acho que ela realmente não queria ver. Eu nunca seria esguia como ela e a minha irmã. Talvez por isso tenha me deixado para trás. Ana estava satisfeita comigo e até riu quando, no fim do dia, tive uma vertigem ao levantar de uma cadeira. Fico feliz que só ela tenha notado, eu realmente não quero responder perguntas agora.
Antes que você pense, eu não sou maluca. Eu não acho que esteja enorme de gorda, sei de cor as minhas medidas, mas também sei o potencial que tenho, e realmente não quero ficar maior do que já estou. Perder alguns centímetros no quadril e na cintura não fariam mal nenhum.
Agora, Ana me acompanha o tempo todo. Eu não quero, de jeito nenhum, que ninguém saiba sobre ela, por isso temos um relacionamento discreto. É mesmo uma sorte que meu pai esteja tão envolvido com a nova namorada ou ele poderia notar que só tomo água antes de ir à escola e que estou sistematicamente reduzindo meu almoço a uma maçã ou um tomate. É mais difícil ser discreta quando saio com os amigos, mas sempre gostei de chá sem açúcar, e quando o lanche vem para todo mundo, pego uma unidade de qualquer coisa, fico brincando com a comida e continuo conversando até eles acabarem com tudo. Ninguém nota, desde que eu faça piadas e continue sorrindo. A imagem da gordinha palhaça cruza a minha mente, e continuo no meu propósito de não me tornar uma delas.
Tenho me pesado todos os dias, e me frustra ter perdido muito pouco peso. Meu pai comentou alguma coisa, elogiou minhas novas formas. Isso é bom. Só preciso continuar o que estou fazendo e ele vai me achar bonita, como achava a minha mãe.

Ultimamente, ela está me deixando louca. Ela me critica mais do que eu mesma. Me arrasta para o espelho, a fita métrica e a balança todos os dias, esfregando na minha cara que eu nunca vou deixar de ser uma gordinha engraçada, e que logo vou virar ponto de referência “estou logo depois da gorda”. Vejo nos meus sonhos uma Sofia deformada, presa em portas giratórias, o Júnior rindo de mim e fingindo que não me conhece, meu pai indo embora e me deixando por ter vergonha do fiasco de filha que sobrou para ele. Acho que não devo reclamar da Ana. Ela me ajuda a ter consciência e tentar melhorar. Dia desses ia sair com a turma para o clube e ela me convenceu do quão patética eu pareceria num biquíni. Fui de short e camiseta e disse que tinha esquecido a roupa de banho. Assim, não envergonhei meu namorado na frente dos nossos amigos. Tenho medo que quando ele perceba o quanto sou deformada, me deixe para sempre. Aliás, acho que ele já desconfia, mal chega perto mim e cada vez me convida menos para sair. Por isso, resolvi apertar nos exercícios, correr todos os dias, fazer mil abdominais. Até pode dar certo, se eu conseguir controlar a vertigem.
Aprendi que se tomar as vitaminas certas, minha energia volta sem ter que me entupir de carboidrato. Também encontrei na internet, um grupo de amigas da Ana. Tem muita dica legal e histórias de meninas que estão quase alcançando o corpo desejado com a ajuda dela. Conheci muita gente bacana e que me entende. Não ficam mentindo, dizendo que estou linda ou até magra demais. Elas jogam a real e me ajudam. Sinto Ana cada vez mais próxima, acompanhando a minha vida a cada passo, me fazendo companhia.
Domingo desses, na casa da minha avó, a namorada do meu pai comentou que eu não tinha almoçado. Ela falou isso na frente de todo mundo e eu virei o assunto da mesa. Saí de lá com horário marcado na terapeuta, muitos olhos em cima de mim e ouvindo xingamentos dirigidos à minha mãe. Por culpa daquela intrometida, agora todo mundo acha que estou traumatizada. Ridículos. Nem percebem que só estou gorda, minha mãe não tem nada com isso.
Cheguei ao consultório cedo. Não deixei ninguém me levar. Por que incomodaria alguém se o Uber está aí para ser usado? As paredes cor de pêssego me deixaram enjoada. Revistas de dois anos atrás, a secretária com o buço por fazer. Estava para desistir quando a doutora abriu a porta. Uma mulher pequena, cabelos pretos, olhos puxados e um jeito delicado que invejei imediatamente. Sentei na frente dela sem ter ideia do que dizer. Ela segurava uma prancheta de acrílico e me perguntou como eu estava, fazendo parecer algo casual. Dei de ombros, disse que estava bem, que meu pai me mandou lá porque minhas tias são malucas e esperam que eu também seja. Ela sorriu, contando que também tem tias malucas e, me pediu que contasse minha história até ali. “Não tenho nada a dizer, doutora.” “Você está aqui, eu também. Não podemos desperdiçar nosso tempo precioso.” Aí comecei a falar, quando nasci, como era minha família, meus pais, amigos e namorado. Claro que não mencionei a Ana. Ela me fez perguntas sobre a minha mãe e eu não queria responder. O que eu diria sobre ela? Linda, chique e meio assustadora? Ela foi embora. Ok. Ela era livre, eu fiquei com o meu pai, não é como se ela tivesse me largado na rua. Eu tenho tudo de que preciso, não quero essa estranha sentindo pena de mim. Droga, por que fui chorar na frente dela? Durante semanas, voltei àquelas conversas. Sabia que se não fosse, teria que dar explicações a todo mundo. Seria mais fácil encarar a japonesa curiosa. Ela me mandou para um médico na mesma clínica que chamou meu pai para conversar.
Encontraram a Ana, me encheram de remédios, contrataram uma nutricionista. Até o Junior fica me vigiando agora. Que ódio da japonesa! Nunca devia ter confiado. Não queria mais ir a nada que ela recomende, mas todo mundo agora acha que pode mandar em mim. Acabei indo a um encontro no parque com outras meninas. Era um piquenique. Uma delas tinha a pele esticada, parecia um cadáver, não conseguia comer nada. Peguei uma ameixa e fiquei mordiscando sentada na roda, fazendo um ou outro comentário espirituoso sobre o que diziam. A líder devia ter seus trinta e poucos anos. Algumas contavam histórias parecidas com a minha, várias também não vêem motivo para todo aquele alarde. Uma das meninas chorou contando da amiga que estava internada. Elas competiam para ver quem emagreceria mais. Eu queria não ter estado lá. A maioria se deixou convencer que têm um problema. Querer ficar bonita agora é uma coisa ruim, era só o que me faltava. Querer perder excesso é bem diferente de ficar igual à menina cadavérica. Continuo visitando a doutora. Ana a detesta. Cada vez que venho de lá, ela fica mais furiosa e grita comigo. Não quero mais levantar de manhã. Fico cansada o tempo todo. Escuto a voz das meninas da internet, do pessoal do piquenique, vejo o rosto da menina-cadáver, Ana grita, a japonesa flutua na minha frente, Junior ri de mim, meu pai me olha assustado, minha mãe sai pela porta, sinto a dor aguda no punho e o chão frio do banheiro em contato com o meu rosto. O sangue quente começa a me molhar. Um grito, gente em volta de mim, toalhas amarradas no meu pulso, sirene da ambulância.
O teto bege do hospital me encara. A luz fria incomoda meus olhos. Meu pai dorme na cadeira, a namorada dele no sofá. Eles percebem que acordei e me abraçam. Eu não achei que eles se importariam. Júnior não apareceu. Por que viria? Ele está cansado disso há um tempo. Pela primeira vez desde nem me lembro quando, choro toda a dor que me apertava a garganta. Ana sorri fria, no canto do quarto, com seus olhos vidrados e cabelo ensebado. Pela primeira vez, quero que ela vá embora para sempre.
Volto à nutricionista, ao médico, ao piquenique e à japonesa. Dói meu estômago comer o que mandam, os remédios me deixam lerda, odeio falar no assunto. No parque, Ana me olhava debochada, ria de mim, apontava meus defeitos. Virei as costas. Nunca mais quero vê-la. Não vou deixar que vença, sou mais forte que ela. Sorrio para a menina na minha frente. O nome dela é Mariana, tem quatorze anos e gosta da minha companhia. Também gosto dela. Eu mereço coisas boas.

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