segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Narciso


São cinco e meia da manhã. Pedro tem os olhos inchados, zonzo de sono. Foi dormir de madrugada, e agora, quatro horas depois, luta para manter-se de pé. Chuveiro. Shampoo. Secador. Mousse. Jeans. Camiseta. Coturno. Shake de proteínas. Celular. Carregador. 4G. Selfie. O ritual de toda manhã. O relógio acusa sete e quinze. É hora de sair. O pai espera dentro do sedan preto, na garagem do prédio. Todos os dias fazem o mesmo percurso. “Tchau, pai.” “Tchau, garoto. Tem dinheiro?” “Tenho, mamãe me deu.” “Até mais tarde.”
Ele vai da esquina até o colégio onde estuda desde o maternal, com seu um metro e oitenta recém adquiridos, andando com uma postura que não combina com seus quinze anos e que ostenta orgulho. A menina loira o recebe com um abraço e um beijo no rosto, que ele devolve sem prestar atenção. Selfie dos dois. Andam abraçados até o pátio. Checa a rede antes de entrar. Mais de cem aprovações na foto da manhã antes de entrar para a aula. Melhor que ontem, mas ainda pode evoluir. Tem milhares de amigos e seguidores. Precisa saber a opinião deles a respeito de si o tempo todo. Deseja a admiração, o respeito e a inveja deles.
Cada aula é uma oportunidade de mostrar sua língua afiada e seu desprezo pelas regras. Responder para a professora de história que a Mesopotâmia fica perto de Nova York, garante risadas e a admiração dos colegas. Nada pode passar. Enfrentar professores, ser amigo das pessoas certas, resgatar cachorrinhos, envolver-se num movimento político que não entende. Toda oportunidade será aproveitada. A imagem do garoto forte, bonito e destemido cresce a cada dia.
No intervalo, mais meninas se juntam a ele. Alguns rapazes também. Selfie do grupo. Risadas. Celulares. Selfies individuais. Likes. Comentários. Snap. Fim do intervalo. Fim da aula. Trezentos likes na primeira foto da manhã. Cinquenta retweets. Muitos comentários. Tudo está bem.
Enquanto espera o elevador, ela chega. Cabelos castanhos nos ombros, vestido de algodão, tênis e mochila. Boa aluna, amiga de infância. “Oi, Pedro. Passa lá em casa mais tarde, tem música nova e o bolo de sempre.” Ele sorri, talvez o primeiro sorriso vindo de dentro naquele dia. Mais tarde, chega à casa dela. Dois andares acima do seu. Outro mundo.
Fotos nos porta-retratos, pôsteres de viagens, bolo no forno, livros na parede, violão no canto. Frequentava desde sempre e nunca enjoaria. A casa tem cheiros e barulhos, bagunça e gente de verdade.
Ela toca, no teclado, a composição nova feita em aula. Tem um jeito de canção de ninar e uma poesia gostosa. Fala de juventude.
Deitados no chão do quarto, conversam sobre a vida, lembram as brincadeiras de criança. Ele sente a falta dela. “Você não devia ter mudado de escola.” “Acha que faria diferença?” “Para mim, sim. Você teria me ajudado.” “Ajudado em que?” “A continuar tendo dez anos.” “Ninguém poderia te ajudar nisso. Todo mundo cresce. Até eu.” “Mas você não mudou. Se pudesse, me ajudaria?” Ela sorri um sim. Fazem silêncio. Contam histórias. Seguram as mãos. Sente as entranhas se contorcerem, quer que esse momento dure para sempre. Cada detalhe é vívido, e ele quer imprimi-lo na mente. A colcha roxa, as cortinas começando a soltar do trilho, o criado suportando os copos, a luminária dos minions, o casaco jogado na cadeira. Ela. Covinhas, sardas, anéis de prata, pé na parede, cabelo macio e bagunçado, camiseta do Queen. Perfeita.
Não sabe quando os sentimentos mudaram, em um momento era a melhor amiga, de uma hora para a outra, se tornou mais que isso. Percebeu no ano anterior, quando brigaram e passaram muito tempo sem se falarem. Naquela época, sentiu que precisava daquela presença, mesmo que discordassem, mesmo que ela risse dele, mesmo que o criticasse. Talvez fosse exatamente por isso. Muitas garotas o queriam. Já tinha beijado algumas delas, e com outras foi um pouco além. Ninguém o marcara como ela, aquelas risadas em tardes longas e desconectadas, cheias de música, chocolate, conversas sem fim e sem sentido. “Seus olhos têm pintinhas.” Ele a estuda, apoiado nos cotovelos, meio deitado por cima dela. Ela os fecha. “Sempre tiveram. Não fique encarando assim.” “Por que?” “Porque não quero que me olhe desse jeito. Você não está pronto.” Nenhum dos dois disse mais nada.
Parte para casa pensando no significado da frase. Por que não poderia olhá-la nos olhos? Será que ela percebia como se sentia? Será que sentia o mesmo? Se sim, por que achava que ele não estava pronto para olhar? Uma vez, leu que os olhos podiam evidenciar o que se passa por dentro de alguém, que seriam um portal capaz de transportar a um mundo que é puro sentimento. A amiga acreditava nisso. Ela o achava um idiota? Queria esconder alguma coisa dele? Vai para a cama com essas questões por companhia.

Às cinco e meia, o despertador toca. Chuveiro. Shampoo. Secador. Mousse. Jeans. Camiseta. Coturno. Shake de proteínas. Celular. Carregador. 4G. Selfie. Snap. Não existe motivo para fazer diferente. Mais de mil likes nas fotos de ontem. Tudo está bem. Suspiro. O espelho reflete o desconforto. Mais uma ajeitada no cabelo. É hora de ir.

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